
A animosidade mistificadora de certas posições favoráveis às cotas constitui uma (inconsciente?) manifestação de autoritarismo e utiliza estratagemas comuns a todas as formas de pensamento único. Criou-se uma confortável redoma em torno da polêmica, restringindo-a tanto aos beneficiários afro-descendentes quanto a especialistas dotados de jargões tidos como inquestionáveis. A simples contestação se transformou num atestado de preconceito racial, sufocada pela perene ameaça de constrangimento público. É a consagração do politicamente correto, raciocínio silogístico de aparência inofensiva que esconde uma empobrecedora tentativa de homogeneização cultural, com respaldo na hipocrisia e no policiamento histérico.
Enquanto isso, a sociedade brasileira vai sendo obrigada a engolir outra engrenagem de valores importada cegamente dos EUA, país com violento histórico de segregação e conflitos étnicos, onde as chamadas “ações afirmativas” fortaleceram o repúdio à miscigenação e não impediram uma velada permanência de hábitos discriminatórios com o sinal invertido. Nossa multiplicidade cultural antiqüíssima, predominantemente sincrética, é demasiado conhecida para insistirmos nas particularidades que deveriam ser levadas em consideração antes de se instituir por aqui uma idéia controversa e talvez malsucedida onde implantada.
Não seria um perigoso equívoco usar pretextos étnicos para diferenciar cidadãos, influenciando o acesso a vagas em instituições de ensino, postos de trabalho ou qualquer objetivo pleiteado por muitos? Esse problema metodológico não é a única objeção possível, mas permanece a mais insolúvel. Imaginemos o absurdo dilema: apelamos para a aberração de estabelecer “raça” utilizando meios pretensamente científicos, investigamos 200 milhões de genealogias ou aceitamos veredictos calcados em critérios tão frágeis como a tez ou o depoimento pessoal.
O sistema de cotas cumpriria um papel lamentavelmente desagregador numa população cuja esmagadora maioria possui algum descendente escravizado, explorado ou humilhado. É retrógrado e incoerente porque reforça ilusórias diferenças quando deveria destruí-las. É traiçoeiro porque ratifica a competição e o oportunismo, já endêmicos. E é injusto porque passa ao largo da miséria ao selecionar suas vítimas, como se houvesse diferença entre flagelados negros, cafuzos ou verdes com bolinhas roxas.
A inclusão social é uma necessidade em âmbito nacional, cuja premência transcende políticas compensatórias limitadas e paliativas. A luta contra o preconceito corre o risco de cair no oficialismo burocrático e perder uma credibilidade conquistada a duras penas, pela eterna reafirmação da essência criminosa do racismo, em detrimento do combate aos alicerces materiais da desigualdade.
Esse debate envolve toda a sociedade e precisa ser abordado de forma transparente, sem ressentimentos, simplificações paternalistas ou maniqueísmos superficiais.
Guilherme Scalzilli
Revista Caros Amigos
Edição 89
Agosto de 2004
Revista Caros Amigos
Edição 89
Agosto de 2004
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